29 de Setembro de 2013

"Bolas, mulher, nunca mais te calas?"
PONTAS SOLTAS - CIDADES
Ricardo Cabral
Edições Asa, 2011
96 págs., tetracromia

Quando "Evereste" - baseado na experiência real do alpinista português João Garcia - saiu em 2007, tinha na sua capa fria e opressiva dois homens a escalar, a um custo muito real e conhecido, uma montanha gelada.
A capa de "Pontas Soltas" situa-se numa posição quase diametralmente oposta à de "Evereste". Um design limpo e colorido coloca-nos numa perspectiva extrema a sobrevoar uma cidade. No meio da imensa estrutura citadina, pequenos vislumbres de elefantes cor-de-rosa, robôs disfarçados de prédios e borboletas inteligentes bidimensionais. Como em "Evereste", somos preparados para o interior do livro.
Uma colecção de histórias curtas que "se unem de forma natural sobre o tema Cidades", "Pontas Soltas" é parte autobiográfico, parte fantástico e parte diário de viagem.
O ponto alto do álbum é "Da cidade...", um passeio pela cidade de Portimão cujo fio condutor é uma conversa continuada pelas várias pessoas que encontramos pelo caminho. Nestas dez páginas, o autor revela uma sensibilidade para o diálogo, plausível e humano, sem a qual esta sequência não seria tão eficaz.
Para além do diálogo, o elemento mais característico da obra é o seu estilo gráfico fotorrealista. Ricardo Cabral é um ilustrador mais que competente (talentoso), domina facilmente os vários elementos do desenho propriamente dito (perspectiva, anatomia, luz, forma, etc.) mas é a sua dependência (admitida no próprio texto) do registo fotográfico que o limita. Pessoalmente prefiro traços mais "livres" e a escolha das cores dá uma aparência artificial mesmo ao desenho de observação "ao vivo".
À parte da minha preferência estilística, gostaria de ver Cabral investir em narrativas menos sediadas na autobiografia (mesmo que com alguns laivos fantasiosos). Não sei se há receio da entrega plena à ficção mas a verdade é que neste álbum a única história ("Lágrimas de Elefante") do género é em colaboração. Agora que se fala em novo projecto e após reconhecimento nacional e além-mar, será interessante ver em que veredas caminhará Ricardo Cabral.

Originalmente publicado aqui.

28 de Setembro de 2013

"You don't live nowhere at all, mate."
THE NEW DEADWARDIANS
Dan Abnett & I.N.J. Culbard
Vertigo Comics, 2012
152 págs., tetracromia

1910. Há 50 anos que a humanidade convive com monstros. Num mundo atingido por uma pandemia que transforma humanos em zombies, os influentes sujeitam-se a uma cura tão monstruosa como a doença. 
Em “The New Deadwardians”, o Inspector-Chefe George Suttle vê-se a braços com a investigação do homicídio de um proeminente cuja causa de morte não se encontra entre as tradicionais da sua espécie, pois a cura a que se submeteram os ricos não é mais que o vampirismo e para essa condição conhecem-se bem as "soluções". 
O que poderia ser o habitual embate hollywoodesco "vampiros versus zombies" é evitado de forma elegante. A ameaça iminente dos mortos-vivos é pano de fundo, a verdadeira história é a de Suttle, um homem que lida com a perda da sua humanidade.
Ao longo da investigação somos apresentados a uma sociedade dividida por mais questões que as financeiras. De um lado, na Zona-B, os trabalhadores de colarinho azul, que se manifestam para obter melhores condições de vida; do outro, na Zona-A, a classe alta, à qual pertencem o protagonista e a vítima, cada vez mais distantes do que é ser humano, praticamente imortais, com a sua segurança garantida pela sua fisiologia alterada que também lhes traz "tendências" que podem ser controladas medicamente. 
É precisamente devido a estas tendências da vítima que Suttle tem a oportunidade de contactar com a "verdadeira humanidade" e se vê aos poucos capaz de a reconquistar em si. Entretanto, um enredo de policial de voltas e reviravoltas que envolve sociedades secretas, conspirações e magia.
Abnett desde o início da trama que adopta uma visão maioritariamente científica para a pandemia, a cura e a morte do vampiro. Essa visão perde vigor nas etapas finais da narrativa tendo que se recorrer a uma explicação mágica da morte que desilude e faz menos coesa a obra. As diferentes sugestões de resolução ao longo da história (a sociedade secreta, a substituição do pai pelo filho) acabam por ser mais interessantes que o final que obtemos - uma não tão típica história de vingança. O fim indicia continuidade e embora Abnett não tenha "tido pernas" para concluir de forma satisfatória, o miolo é cativante e faz querer conhecer mais este mundo.

14 de Setembro de 2013

"Don't trust the map."
JIM HENSON'S TALE OF SAND
Ramón Pérez
Archaia Entertainment, 2011
120 págs., tetracromia

Originalmente planeada para ser uma longa metragem, "Tale of Sand" acaba, quarenta e cinco anos após ter sido arquivada pelos seus criadores Jim Henson e Jerry Juhl, por ser adaptada ao formato graphic novel. Henson é conhecido pela criação dos Muppets (entre outros) e pelas suas colaborações com pessoas igualmente talentosas, se não tão conhecidas, como é o caso de Juhl.
"Tale of Sand" é uma alegoria. No meio do deserto, uma pequena cidade festeja efusivamente. Há música, bebidas e até palhaços. O nosso protagonista, Mac, encontra-se pelo meio das celebrações, parece ser de fora da cidade e estar confuso e desconfortável. Rapidamente é carregado em ombros até ao gabinete do xerife e é este que o irá instruir sobre o que tem a fazer. É-lhe dada uma mochila, um mapa, a chave da cidade e dez minutos de avanço. Só tem que chegar a determinado local para estar "salvo".
A seguir começa a corrida desenfreada, uma perseguição, muitas vezes explosiva, repleta de encontros caricatos com personagens que nem contextualizadas fariam sentido. Trata-se, afinal, de uma "comédia-drama surrealista".
Ramon Pérez aparece quase do nada para ilustrar esta multipremiada bd e é a sua arte que consegue fazer funcionar a narrativa ténue. Num guião com poucas palavras e pouca caracterização de personagens, maior ainda é a importância das expressões faciais e da linguagem corporal. Pérez explora diferentes técnicas de forma a representar da melhor forma as diferentes mudanças de ambiente e de atitude das personagens. É um livro bonito.
Quanto à alegoria, podemos dizer que "Tale of Sand" é sobre a vida. Um tema tão vasto só se pode abordar com algum humor e ridículo. Empurrado para o desconhecido com noções vagas do que se vai encontrar e descobrir que as coisas são mais esquisitas do que pensávamos; reconhecer que somos o principal obstáculo no nosso caminho e acabar mais ou menos como começámos. Soa mais ao menos ao que é a vida, só que esta é ainda mais surreal que o conteúdo deste livro.

Queria ainda agradecer a André Nóbrega pelo empréstimo do livro e, como bónus, podem ler a sua análise de "Tale of Sand" aqui.
 

7 de Setembro de 2013

"Hecho en CHINA. Pensado en EUROPA."
FAGOCITOSIS
Marcos Prior & Danide
Ediciones Glénat, 2011
120 págs., tetracromia

A fagocitose é o processo pelo qual determinadas células conseguem capturar e digerir partículas sólidas. No ser humano tem um papel na defesa do corpo contra microorganismos patológicos. As células capazes deste mecanismo envolvem, por exemplo, uma bactéria e depois, através da acção de um sistema "digestivo" primitivo, destroem-na. É, de certa forma, o equivalente a nível celular do acto de "devorar".
Comecemos pela capa. Na capa estão representados dois indivíduos de mão erguida, o seu gesto sugere que fazem parte de algum movimento, revolucionário ou não, as suas roupas indicam que têm posses, pertencem provavelmente à classe média-alta, a pender para a alta, acompanha-os um cão de raça caniche, que está associado a riqueza, e sorriem, o que sugere que estão do lado vencedor da revolução ou que, pelo menos, estão a ser beneficiados por ela. Por cima deles o logótipo  do livro espelha o símbolo da Mastercard®. Desta feita, os círculos não são do mesmo tamanho, as cores estão invertidas (o amarelo à esquerda e o vermelho à direita) e, mais tarde no livro, quando chegamos ao fim, primeiro na secção de design do logótipo, depois, finalmente, na contracapa, apercebemo-nos que o círculo maior está a ganhar terreno ao mais pequeno e que, com a proximidade, o segundo perde as suas qualidades (forma, cor) e que os limites desapareceriam por completo se a acção continuasse. O que se esperaria seria a obliteração total do círculo mais pequeno que seria "devorado" pelo maior. Como na fagocitose e como é descrita nestas etapas finais do livro, trata-se de uma "interacción celular entre desiguales".
"Fagocitosis" é um livro que aborda temas muito actuais: o capitalismo agressivo; o funcionamento do mercado financeiro; as políticas do prémio Nobel (dissecadas por Carl Sagan); técnicas de marketing metafísicas; as exigências cada vez mais absurdas para se conseguir um emprego; etc.
A forma como o faz é muito interessante, Marcos Prior opta por diferentes apresentações, desde uma página do YouTube, passando pelo percorrer de uma cidade num formato street view do Google Maps, até à estrutura mais típica de um policial, entre outros. Sempre com uma dose de humor e ironia e, de certa forma, algum desespero.
É sem dúvida o aspecto visual que mais chama a atenção nesta obra, a arte versátil de Danide consegue, sem aparente esforço, manobrar entre estilos gráficos, do mais realista a um traço simples reminiscente de Vázquez.
Uma temática algo pesada com uma aparência deslumbrante fazem desta a bd dos tempos modernos, é tudo muito bonito mas "há algo de podre no reino da Dinamarca". E seria verdade se a Dinamarca não fosse um país escandinavo mas sim um país do sul da Europa. Que não é.